O dano moral à coletividade decorrente dos danos causados
a bens ambientais culturais, assim como da privação do
direito de fruição desses bens

 

 

Liliane Garcia Ferreira

Promotora de Justiça de Cubatão

 

 

1. O dano moral individual.

O conceito jurídico de dano sempre esteve ligado a perda patrimonial, havendo, a princípio, muita resistência à indenização do dano moral, até mesmo sob o absurdo argumento de que não seria possível compensar a dor moral com dinheiro.

Contudo, a Constituição Federal de 1988 veio por fim à celeuma, ao alçar o direito a indenização por dano moral à categoria de garantia fundamental, conforme dispõe seu art. 5º, Incs. V e X, integrando-o definitivamente ao nosso direito positivo. Aliás, trata-se mesmo de cláusula pétrea, nos termos do disposto no art. 60, § 4º, Inc. IV, da Carta Maior e, portanto, imutável.

Evidente que a enumeração constante dos dispositivos constitucionais retro mencionados é meramente exemplificativa, conforme, aliás, pacífico na doutrina e jurisprudência pátrias, devendo a reparação por dano moral ser a mais ampla possível, considerado este como o dano extrapatrimonial, a lesão a um bem jurídico protegido, que não tenha como conseqüência qualquer desfalque patrimonial, mas atinja o ser humano em seus valores mais caros, tais como a vida, a honra, a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade de locomoção, de pensamento, o exercício de atividade comercial, intelectual, artística, científica e de comunicação, etc., causando-lhe sofrimento.

Atualmente a reparação do dano individual puramente moral encontra-se pacificada no direito pátrio, a qual, desvincula-se do caráter meramente ressarcitório de uma perda patrimonial, representando uma compensação para a vítima, em razão do sofrimento que lhe foi infligido injustamente, ao lado do caráter punitivo para aquele que praticou a ofensa, e, concomitantemente, preventivo de que venha a incidir em prática semelhante.

 

2. O dano moral coletivo.

Acompanhando a evolução do direito, em especial no aspecto da tutela dos interesses difusos e coletivos, a doutrina mais moderna vem ampliando a possibilidade de reparação do dano moral, de forma que venha a alcançar não apenas o dano extrapatrimonial individual, como também o coletivo, uma vez que pode abranger, além da ofensa à honra, à vida, à liberdade de um indivíduo, qualquer ofensa à coletividade, genericamente considerada, "que tem um interesse comum de natureza transindividual agredido".

O Prof. Rubens Limongi França, citado por Sérgio Severo, em sua obra "Os danos extrapatrimoniais", ao conceituar o dano moral, já o definia como "aquele que, direta ou indiretamente, a pessoa, física ou jurídica, bem assim a coletividade, sofre no aspecto não econômico de seus bens jurídicos".

Carlos Alberto Bittar Filho disciplina que dano moral coletivo "é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos", citando como exemplo de dano moral coletivo o dano ambiental, o qual consiste "na lesão ao equilíbrio ecológico, à qualidade de vida e à saúde da coletividade".

Marco Antonio Marcondes Pereira, por sua vez, conceitua o dano moral coletivo como "o resultado de toda ação ou omissão lesiva significante, praticada por qualquer pessoa contra o patrimônio da coletividade, considerada esta as gerações presentes e futuras, que suportam um sentimento de repulsa por um fato danoso irreversível, de difícil reparação, ou de conseqüências históricas" .

Aliás, a reparação do dano moral coletivo, de há muito, encontra respaldo na legislação brasileira.

A Lei Federal 6.938/81, ao dispor em seu art. 2º, Inc. I, que o meio ambiente é "patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo", já assegurava a proteção a esse interesse difuso, inclusive a reparação de eventuais danos a ele causados, impondo penalidades administrativas, a par da obrigação de reparação dos danos, conforme o disposto em seus arts. 4º, Incs. VI e VII; 9º, Inc. IX; e 14, § 1º.

E mencionada norma foi recepcionada pela Constituição Federal que, conforme já mencionado no tópico nº 2, pacificou a questão do direito à indenização por dano moral, elevando-o à categoria de garantia fundamental, não se podendo olvidar, jamais, o caráter exemplificativo das hipóteses previstas nos dispositivos constitucionais, que não têm o condão de tornar exclusiva a reparação dos danos morais individuais.

Ora, conforme o disposto em seu art. 5º, § 2º, os direitos e garantias expressos na Constituição "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Da mesma forma, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 6º, Incs. VI e VII, de maneira expressa, prevê o dano extrapatrimonial tanto na hipótese de violação de direitos individuais, quanto coletivos e difusos.

Afinal, conforme bem menciona André de Carvalho Ramos, diante da importância dos interesses difusos e coletivos, estes necessitam de uma efetiva tutela jurídica: Ora, tal importância somente reforça a necessidade de aceitação do dano moral coletivo, já que a dor psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual acaba cedendo lugar, no caso do dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade.

Induvidoso, conforme adverte o mesmo autor, que a "coletividade, apesar de ente despersonalizado, possui valores morais e um patrimônio ideal que merece proteção", devendo a lesão a esse patrimônio imaterial coletivo ser reparada, também, coletivamente.

 

3. O dano moral ambiental.

De difícil conceituação, o dano ambiental é definido por Édis Milaré como "a lesão aos recursos ambientais, com consequente degradação – alteração adversa ou "in pejus" – do equilíbrio ecológico".

Para José Afonso da Silva "dano ecológico é qualquer lesão ao meio ambiente causada por condutas ou atividades de pessoa física ou jurídica de Direito Público ou de Direito Privado".

Numa definição mais abrangente, Marga Barth Tessler conceitua o dano ambiental ou ecológico como "toda a degradação que atinja o homem na saúde, na segurança, nas atividades sociais e econômicas, que atinja as forma de vida não humanas, vida animal ou vegetal e o meio ambiente em si, do ponto de vista físico, estético, sanitário e cultural".

Para a formulação do conceito de dano ambiental no direito brasileiro costuma-se recorrer ao conceito de poluição, estatuído no art. 3º, Inc. III, da Lei nº 6.938/81, segundo o qual poluição é "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos".

Pode-se concluir, do exposto, que haverá dano ambiental toda vez que houver alteração negativa ao bem jurídico meio ambiente, o qual, importa lembrar, não abrange apenas o meio ambiente natural, constituído pela fauna, a flora, o solo, a água, o ar atmosférico, mas também, conforme bem conceitua o eminente constitucionalista José Afonso da Silva, o meio ambiente artificial e o meio ambiente cultural.

Característica importante do dano ambiental é a pluralidade de vítimas, ainda que, em alguns casos, possa atingir, também, uma pessoa ou um conjunto de pessoas individualizáveis. Todavia, em qualquer situação será sempre vítima a coletividade, em razão do conceito de bem ambiental, trazido pela própria Constituição Federal, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

O bem ambiental tem, assim, natureza jurídica de bem difuso, de natureza transindividual, cujos titulares são pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato, conforme definição dos denominados interesses ou direitos difusos, trazida pelo art. 81, parágrafo único, I, da Lei nº 8.078/90, os quais, pressupõem a existência de um bem de natureza indivisível, como é o meio ambiente, bem jurídico autônomo, que não se confunde com os bens públicos ou privados.

Dessa forma, titular do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, conforme dispõe o art. 225, "caput", da Magna Carta, é a coletividade, genericamente considerada, aqui incluídas as presentes e futuras gerações.

Assim, qualquer ofensa a esse direito, garantido constitucionalmente, gera ao infrator, além das sanções penais e administrativas eventualmente cabíveis, o dever de reparar os danos causados, nos exatos termos do § 3º, do art. 225, já mencionado.

Nesse ponto, agiu bem o legislador constituinte ao utilizar a expressão genérica "danos" na norma retro mencionada, sem fazer qualquer distinção entre dano material e moral, o quê significa dizer que abrange tanto os danos patrimoniais como os extrapatrimoniais.

Aliás, a Lei 7.347/85, com a nova redação dada pela Lei 8.884/94, prevê expressamente, em seu art. 1º que "Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I- ao meio ambiente;... IV- a qualquer outro interesse difuso ou coletivo". (grifo nosso).

Tal disposição consagrou em nosso ordenamento jurídico, a reparação do dano coletivo ou difuso em toda a sua extensão, inclusive não patrimonial.

A coletividade, diante de um prejuízo ambiental, sem qualquer sombra de dúvidas, pode ser afetada quanto a seus valores imateriais, face ao sentimento coletivo de desapreço, à intranqüilidade, à angústia e à dor por ele gerados no seio de determinada comunidade.

Afinal, evidente que a diminuição da qualidade de vida, pela degradação ambiental, traz imensos transtornos à coletividade, já que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencialmente difuso, diz respeito a todos, sendo considerado essencial à dignidade social humana, fundamento do Estado Democrático de Direito que constitui a República Federativa do Brasil.

Forçoso concluir, portanto, que a coletividade goza do direito de reclamar os danos que venha a sofrer, sejam eles patrimoniais ou extrapatrimoniais, toda vez que houver lesão a um interesse difuso ou coletivo, especialmente quando estamos falando de um direito fundamental da pessoa humana, garantido constitucionalmente, como o é o direito de "todos" ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 

4. O direito de todos ao meio ambiente cultural.

A proteção dos bens culturais, já não fosse direito fundamental individual, conforme assegura o art. 5º, Inc. LXXIII, da Lei Maior, que prevê o instrumento da ação popular visando anular ato lesivo ao patrimônio histórico e cultural, dentre outros bens jurídicos, a qual pode ser proposta por todo e qualquer cidadão, constitui, induvidosamente, um direito difuso, por se tratarem aqueles de bens ambientais em seu sentido amplo.

Como é sabido, o bem jurídico meio ambiente não abrange apenas o meio ambiente natural, constituído pela fauna, a flora, o solo, a água, o ar atmosférico, mas também, o meio ambiente artificial e o meio ambiente cultural.

Édis Milaré preceitua que para o Direito brasileiro "são elementos do meio ambiente, além daqueles tradicionais, como o ar, a água e o solo, também a biosfera, esta com claro conteúdo relacional (e, por isso mesmo, flexível). Temos, em todos eles, a representação do meio ambiente natural. Além disso, vamos encontrar uma série de bens culturais e históricos, que também se inserem entre os recursos ambientais, como meio ambiente artificial ou humano, integrado ou associado ao patrimônio natural".

Com a promulgação da Carta Constitucional de 1988, o patrimônio cultural brasileiro foi elevado à categoria de direito humano fundamental, bem difuso, cuja guarda, integridade e fruição devem estar asseguradas para as presentes e futuras gerações, seja por estar inserido no conceito de meio ambiente, conforme disposto no art. 225, "caput", da norma constitucional, seja por ter a Lei Magna instituído, ainda, proteção específica ao mesmo, como patrimônio do povo brasileiro, o fazendo no título que trata da ordem social, cujos objetivos são o bem-estar e a justiça sociais (art. 193, CF).

Assim, o art. 216, da Magna Carta estabelece que "Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico".

Consoante adverte Filippe Augusto Vieira de Andrade, a expressão "nos quais se incluem" utilizada na norma constitucional já deixa claro que os bens mencionados nos incisos do art. 216, como patrimônio cultural brasileiro, não excluem outros de valor para o povo brasileiro.

No mesmo sentido são as disposições dos arts. 260 e 261 da Carta Constitucional Paulista.

Estando os bens que integram o patrimônio cultural incluídos entre os bens ambientais em seu sentido amplo, impõe-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-los e preservá-los para as presentes e futuras gerações, posto que essenciais à sadia qualidade de vida, e, conseqüentemente, à dignidade da pessoa humana, bem como promovê-los, conforme determina o § 1º, do art. 216, supra mencionado.

Nossa Carta Magna deixa claro que toda a atuação da sociedade e do Estado deve ter como paradigma a dignidade da pessoa humana, que se constitui em fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme expressamente previsto em seu art. 1º, Inc. III. E tal princípio fundamental somente estará garantido na medida em que os bens ambientais culturais sejam mantidos íntegros, ao largo de qualquer forma de degradação ou destruição, bem como possa ser garantido à coletividade em geral, conhecer, participar e fruir de todos os bens de natureza material ou imaterial portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da nossa sociedade.

 

5. O direito de todos à fruição dos bens ambientais culturais.

Induvidoso que o direito de todos ao patrimônio cultural abrange não somente a guarda, preservação e proteção desses bens, mas nos exatos termos do §1º, do art. 216, da Carta Maior, sua promoção, nela se inserindo o direito de acesso e fruição de tais bens pela coletividade em geral, diante de sua titularidade difusa.

Ainda assim, para não deixar dúvidas, o legislador constituinte editou norma específica garantindo a todos o acesso e fruição de tais bens difusos, conforme o disposto no art. 215, "caput", da Carta Excelsa: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais".

Também a Constituição Estadual Paulista traz disposição no mesmo sentido, em seu art. 259.

Aliás, o direito de participação, acesso e fruição da cultura já havia sido reconhecido como direito essencial à dignidade da pessoa humana na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada aos 10/12/48, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, que em seu art. XXVII-1, estabelece que: "Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios".

Conclui-se, portanto, sem quaisquer dúvidas ou hesitações, que todos são titulares do direito de fruição dos bens ambientais culturais, direito humano fundamental, de natureza difusa, já que aqueles se constituem em bens de uso comum do povo, essenciais à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações e à garantia da dignidade da pessoa humana. (grifo nosso).

Por esse motivo, cabe ao Poder Público, em todos os níveis (federal, estadual e municipal), aqui englobados os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, dentro das respectivas esferas de atribuições, a par do dever de proteger o patrimônio cultural, também o dever de promovê-lo, garantindo que todos a ele tenham acesso, possam fruir e exercitar.

Contudo, para tanto, não basta instituir meios de acautelamento e preservação desses bens pelo Poder Público. O direito preconizado nos arts. 215, 216 e 225, da Constituição pátria, prevê expressamente a inclusão da coletividade nesse processo, conforme o disposto no "caput" deste último, bem como no § 1º, do art. 216, retro citado, ao estabelecer que a proteção do patrimônio cultural deverá ser efetivado pelo Poder Público, "com a colaboração da comunidade".

Ademais, detendo a coletividade a titularidade da fruição desses bens, não pode ficar à margem das decisões a eles pertinentes, muito menos ser excluída do pleno exercício dos direitos culturais e do acesso às fontes de cultura.

Contudo, é o que comumente se verifica, e na maioria das vezes a ofensa a essa garantia constitucional decorre da própria omissão do Poder Público no cumprimento do dever de promoção e proteção dos bens ambientais culturais.

É que mesmo bens tombados, face à total ausência de ação fiscalizatória, medidas preventivas de controle, promoção, incentivo, repressão, conservação e restauro por parte do Poder Público, acabam alcançando estado tal de degradação, que a coletividade se vê privada do direito de conhecer, ter acesso, fruir de parcelas importantes do nosso patrimônio cultural.

Enfim, o Estado, nessas hipóteses, não cumpre o dever que lhe é impositivo, nos exatos termos do art. 215, da Magna Carta, e 259 da Carta Estadual, de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, no qual se inclui a garantia de acesso às fontes de cultura.

 

6. O dano moral coletivo decorrente dos prejuízos tecnicamente irreversíveis aos bens ambientais culturais.

Não é demais repetir que a Constituição Federal, especialmente em seu art. 225, tornou imperativo ao Poder Público a adoção de medidas necessárias à defesa, manutenção, preservação e restauração do meio ambiente, sendo essa imposição reforçada, quanto aos bens culturais, nos §§ 1º, dos arts. 215 e 216 da Carta Maior, a que se somam os arts. 191, 259, 260, e 261 da Carta Estadual Paulista.

Nem é necessário dizer que a atuação do Poder Público, no cumprimento de seu dever, deve ser sempre voltada à prevenção da ocorrência de danos ao meio ambiente, posto que de extrema importância para a manutenção do equilíbrio ecológico, diante da irreversibilidade técnica dos danos ambientais.

Tal assertiva se aplica perfeitamente à proteção do patrimônio cultural, em que a atuação do Poder Público deve estar orientada para a prevenção da ocorrência de danos, visto que, da mesma forma que no tocante ao meio ambiente natural, muitas vezes torna-se impossível a restituição de um bem do patrimônio cultural ao "status quo ante", representando sua degradação ou desaparecimento um empobrecimento imensurável do patrimônio de toda a humanidade.

Contudo, conforme já mencionado, a proteção ao patrimônio cultural em nosso país não vem sendo tratada com a seriedade e responsabilidade necessárias, podendo-se encontrar inúmeros exemplos de bens em avançado estado de degradação e em vias de total perecimento, face à omissão do Poder Público no cumprimento do dever de proteção, preservação e restauração desses bens ambientais.

É que, embora cresça a cada dia o número de bens que têm o seu valor cultural oficialmente reconhecido através do registro e tombamento, muito pouco se tem feito após esse reconhecimento, tanto no tocante a bens de propriedade particular, quanto e, principalmente, quando se tratam de bens públicos, especialmente no que concerne a adoção de medidas preventivo-reparatórias, ou seja, de conservação e restauro desses bens.

Assim, é comum nos depararmos com bens ambientais culturais degradados ou destruídos, muito mais pela omissão do Poder Público na adoção ou exigência de adoção de medidas de conservação e restauro, que por qualquer intervenção degradadora.

Contudo, importa destacar que toda vez que, em razão de omissão ou em decorrência de intervenção (ação), lícita ou ilícita, houver danos aos bens culturais, entendidos aqueles como a "alteração adversa, parcial ou total, de quaisquer de seus elementos caracterizadores", surgirá o inafastável dever de repará-lo, ou seja, recuperar, restaurar e conservar tais bens.

No caso de impossibilidade técnica de recuperação do bem, parcial ou total, tornando-se irreversíveis os danos causados, caberá indenização em dinheiro ou através do já conhecido instrumento da compensação ambiental pelos danos irrecuperáveis.

Note-se que essa indenização se refere tão-somente aos danos patrimoniais ambientais decorrentes da lesão física a um bem do patrimônio histórico ou cultural.

Nesse ponto, cabe mencionar que, como é sabido, o direito pátrio adotou a responsabilidade objetiva ilimitada e integral pelos danos causados ao meio ambiente, conforme se extrai do disposto no § 3º, do art. 225, da Carta Magna, que assim dispôs: "As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados", a que se soma o art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81, por ela recepcionada.

Com efeito, a Carta Maior dispensou qualquer análise de culpa como determinante do dever de reparar o dano causado ao meio ambiente, que independe, ainda, de ser a atividade lícita ou ilícita.

A solidariedade é outro aspecto da responsabilidade civil ambiental, a ela se aplicando as regras do disposto no art. 1.518, 2ª parte, do Cód. Civil, e ganha importância na questão em tela especialmente quando se tratar de bem particular objeto de tombamento, respondendo pelos danos causados, tanto aquele que diretamente causou a degradação do bem, que pode ser o proprietário ou terceiro, como o Poder Público, isoladamente ou em conjunto com aquele(s), especialmente quando este se omite no cumprimento do dever de proteção, preservação e restauro desses bens, como comumente acontece.

Assim, a reparação do dano ambiental poderá ser exigida de todos e de qualquer um dos responsáveis, que a ele tenham dado causa, isoladamente ou não, direta ou indiretamente, através da ação civil pública competente.

Mas não é só. Conforme já destacado, o ordenamento jurídico pátrio prevê expressamente a responsabilização do degradador pelos danos morais causados ao meio ambiente, bem como a outros interesses difusos e coletivos, iniciando pela Lei Maior da nação (art. 225, § 3º) e prosseguindo na legislação infraconstitucional pertinente (Leis Federais 6.938/81, 7.347/85, 8.078/90, etc).

Dessa forma, nesses casos, considerando-se o valor do bem para a coletividade, o grau de repercussão do evento danoso, representativo de uma ofensa ao sentimento coletivo, diante da titularidade difusa dos bens ambientais culturais, a par da indenização pela irremediável perda total ou parcial do bem cultural – dano patrimonial ambiental - caberá, ainda, indenização pelos danos ambientais extrapatrimoniais decorrentes do mesmo fato, experimentados pelos titulares do direito aos bens ambientais, representativa da indignação, da dor coletiva (ainda que não haja dor em seu sentido estrito) e garantidor do restabelecimento da dignidade social, ao mesmo tempo em que funciona como medida de caráter preventivo, por representar ampliação da possibilidade de imputação do degradador do meio ambiente.


7. O dano moral coletivo decorrente da privação do direito de fruição dos bens ambientais culturais.

A par do dano ambiental extrapatrimonial decorrente da irreversibilidade técnica da degradação parcial ou do total perecimento de um bem cultural, pode existir, ainda, em alguns casos, especialmente diante do disposto no art. 215, "caput" e art. 225, "caput" da Constituição Federal, bem como art. 259, da Constituição Estadual Paulista, dano moral pela privação de acesso e fruição desses bens.

Conforme já foi dito, a Carta Maior ao estabelecer o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos e bem de uso comum do povo, atribui a todos a titularidade de sua fruição, nele incluídos os bens que integram o meio ambiente cultural.

No particular aspecto dos bens ambientais culturais, a Carta Excelsa, ao dispor no art. 215, "caput", que "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais", bem como ao assegurar a participação da comunidade na promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro (art. 216, § 1º), impôs ao Poder Público, a par do dever inarredável de proteger e restaurar o patrimônio cultural nacional, também a posição de garantidor do direito de fruição, ou seja, de que todos a ele tenham acesso, possam dele fruir, participar e exercitar.

Anote-se, mais uma vez, que idêntica é a disposição contida no art. 259, da Constituição do Estado de São Paulo.

Entretanto, diariamente podemos verificar que esse direito não vem sendo plenamente garantido a todos, seja no tocante aos bens culturais materiais, seja no que pertine aos bens imateriais.

Nesse ponto, cabe mencionar que iremos concentrar este trabalho no particular aspecto da violação desse dever pelo Poder Público, em razão da ação, e principalmente omissão, de adoção de medidas de conservação e restauro de bens materiais oficialmente reconhecidos como de valor cultural e até mesmo face à mera ausência no cumprimento do dever de promoção desse patrimônio.

É bastante comum nos depararmos com bens do patrimônio cultural que, embora tombados, se encontram em estado tão avançado de degradação que permanecem anos e anos, até mesmo décadas, fechados para visitação e caminhando gradativamente para o total perecimento, sendo a coletividade privada de sua fruição, do acesso a importantes fontes da cultura, quase sempre desconhecendo até mesmo a razão que levou à instituição de proteção legal de tais bens.

Em outras situações, a despeito da boa conservação dos bens, não vêm eles sendo promovidos, ou seja, a coletividade não tem a eles acesso, sendo-lhe vedado conhecê-los e deles fruir.

Conseqüentemente, nesses casos, o Estado não vem garantindo o direito de todos ao pleno exercício dos direitos culturais, faltando ao cumprimento de um dever que é imperativo constitucional ao Poder Público.

Nessas hipóteses, mais evidente se torna a existência de um dano extrapatrimonial coletivo, visto que intolerável que a coletividade seja privada do pleno exercício dos direitos culturais, do acesso às fontes da cultura, enfim, da fruição desses bens difusos, direito do qual é titular, surgindo, daí, o dever de indenizar.

Isso sem falar no sentimento coletivo de indignação diante da triste constatação, muitas vezes diária, da gradativa deterioração de importantes bens que constituem o acervo da memória nacional, regional e/ou local, sem que nada seja feito para evitar o seu desaparecimento.

Bastante clara é a presença de um dano não patrimonial, uma vez que se trata de ofensa a um direito não econômico da coletividade, ou seja, ao direito de todos à fruição dos bens ambientais culturais (materiais ou imateriais) em seus diversos aspectos: exercício, acesso, participação nas decisões, conhecimento, etc.

Dessa forma, sempre que, em conseqüência da degradação de bens ambientais culturais ou do não cumprimento do dever de promoção desses bens, por ação ou omissão, a coletividade ficar privada do acesso a essas fontes da cultura, a par da obrigação de recuperação, restauração e conservação desses bens, bem como indenização pelos danos patrimoniais e extrapatrimoniais irreversíveis, decorrentes de sua perda parcial ou total, se for o caso, caberá, ainda, indenização por danos extrapatrimoniais decorrentes da lesão ao direito de todos ao pleno exercício do direito de fruição desses bens.

Diante da comum omissão do Poder Público no cumprimento do dever de proteção, preservação e restauração dos bens ambientais, em regra este ocupará o pólo passivo da ação civil pública competente, isoladamente ou em conjunto com o proprietário particular e/ou degradador direto, se for o caso.

Cumpre mencionar que, na hipótese tratada neste tópico, bem como no tópico anterior (dano moral coletivo pelos danos tecnicamente irreversíveis aos bens ambientais culturais), há mesmo presunção absoluta da ocorrência de dano moral à coletividade, dispensando-se qualquer prova nesse sentido.

Outro aspecto que merece menção é que, da mesma forma que no dano moral individual, há grande dificuldade na fixação do valor do dano ambiental extrapatrimonial. Contudo, tal fato não pode servir como justificativa ao Poder Judiciário para a não concessão desse direito, sob pena de se negar vigência a vários dispositivos da Cartas Constitucionais Federal e Estadual e normas infraconstitucionais, instalando-se no país a insegurança jurídica.

O estabelecimento do "quantum" da indenização deverá ser feito, em regra, por arbitramento, estando o Poder Judiciário atento aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade, podendo-se observar, ainda, a gravidade, extensão, repercussão da ofensa, a intensidade do sofrimento da coletividade, a situação econômica do ofensor e até mesmo o grau de culpa, embora esta seja dispensável, mas, principalmente, que a indenização por dano moral represente mais um fator de desestímulo ao degradador.

 

CONCLUSÃO:

1. O ordenamento jurídico brasileiro protege os valores morais individuais, assim como os valores morais coletivos. Portanto, toda vez que houver ofensa a valores morais coletivos, será devido pagamento de indenização pelos danos causados pelo responsável direto ou indireto.

2. Sempre que houver dano tecnicamente irreversível a bens ambientais culturais, a par da indenização devida em razão da perda total ou parcial do bem – dano patrimonial ambiental – será devida, adicionalmente, indenização à coletividade pelos danos morais ambientais decorrentes do mesmo fato, os quais são presumidos.

3. Toda vez que, em razão de ausência de conservação, má conservação, deterioração ou degradação de bens ambientais culturais ou por qualquer atividade comissiva ou omissiva, a coletividade for privada do acesso a essas fontes de cultura, sem prejuízo da obrigação de fazer a recuperação, restauração e conservação desses bens, assim como da obrigatoriedade do pagamento de indenização pelos danos extrapatrimoniais decorrentes de sua perda parcial ou total (dano tecnicamente irreversível), se for o caso, será devida, ainda, indenização por danos morais ambientais decorrentes da lesão ao direito de todos à plena fruição desse patrimônio.

 

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