A caracterização do Poder Público como poluidor face à omissão no dever de proteção do meio ambiente, frente às invasões a áreas ambientalmente protegidas.

 

 

Liliane Garcia Ferreira

2º Promotor de Justiça de Cubatão

 

 

1. O dever constitucional do Poder Público proteger o meio ambiente. 

 

                     A Constituição Federal, ao estabelecer no art. 225, “caput”, que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” tornou imperativo ao Poder Público a “preservação, recuperação e revitalização” do meio ambiente, como essencial para assegurar o direito fundamental à vida (art. 5º, “caput”), posto que a tutela da qualidade do meio ambiente diz respeito mesmo à sobrevivência humana na Terra.

 

                         Antes mesmo do capítulo dedicado ao meio ambiente, a Magna Carta, ao fixar as competências das entidades políticas que compõem a República Federativa do Brasil, que tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, Inc. III), disciplinou, em seu art. 23, Incs. I, VI e VII, ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: “I- zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;...VI- proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII- preservar as florestas, a fauna e a flora;”

 

                     No mesmo diapasão são os arts. 191 a 193 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                     Da mesma forma, a Lei 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, já consagrara, especialmente em seus arts. 2º, Incs. I, III, IV, V e IX, e art. 4º, Incs. I, III, V e VI, o dever do Poder Público desenvolver e efetivar ações visando à proteção do meio ambiente, principalmente, em respeito ao princípio fundamental do Direito Ambiental, medidas de caráter preventivo .

 

                     No mesmo sentido é a Lei Estadual nº 9.509/97, que dispõe sobre a Política Estadual do Meio Ambiente, cujos principais princípios impõem ao Poder Público a adoção de medidas preventivas de proteção ambiental, como se denota de seu art. 2º, Incs. I, II, IV, V, XI, XII, XIV e XX, dentre outros.

    

                     Das normas supra citadas, pode-se concluir que o Poder Público não tem qualquer liberdade de escolha quando se trata da proteção do meio ambiente: deve sempre e sempre - posto que não se trata de mera faculdade, mas imperativo constitucional, fundamento do Estado Democrático de Direito - atuar de forma eficiente para assegurar a efetividade do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, defendendo-o e preservando-o para as presentes e futuras gerações.

 

2. Princípios do Direito Ambiental consagradores do dever do Poder Público defender e preservar o meio ambiente e o princípio da prevenção.

 

                     Dentre os princípios fundamentais do Direito Ambiental que trazem ínsita a obrigatoriedade do Poder Público proteger o meio ambiente destacam-se:

 

                     a) Princípio da natureza pública da proteção ambiental: fundado no reconhecimento pela Carta Magna do meio ambiente ecologicamente equilibrado como um bem de uso comum do povo, mais que patrimônio público, bem difuso, impondo ao Poder Público e à coletividade a responsabilidade pela sua proteção.

 

                     Referido princípio, conforme preconiza o insígne Édis Milaré mantém “estreita vinculação com o princípio geral de Direito Público da primazia do interesse público e também com o princípio de Direito Administrativo da indisponibilidade do interesse público”. 

 

                     Desse princípio decorre que o Poder Público não pode transigir em matéria ambiental, face à indisponibilidade do meio ambiente, cuja defesa “é um dever precipuamente do Estado, que só existe para prover as necessidades vitais da comunidade”.

   

                     b) Princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal: respaldado na própria Constituição Federal, especialmente em seu art. 225, que impõe ao Poder Público a adoção de medidas necessárias à defesa, manutenção, preservação e restauração do meio ambiente.

 

                     E não se pode olvidar que referidos princípios devem ser interpretados em consonância com o princípio da prevenção, consagrado pela doutrina e legislação ambiental, do qual decorre que a atuação do Poder Público, no cumprimento de seu dever, deve ser sempre voltada à prevenção da ocorrência de danos ao meio ambiente, posto que de extrema importância para a manutenção do equilíbrio ecológico, “já que os danos ambientais, tecnicamente falando, são irreversíveis e irreparáveis”.

 

                     Tamanha a importância desse princípio, que é previsto expressamente em documentos internacionais sobre a matéria, como a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), e na própria Constituição Federal em vigor, especialmente no “caput” e § 1º, de seu art. 225.             

3. Do crescimento desenfreado e devastador de invasões a áreas ambientalmente protegidas.

 

                     É com pesar que vemos o crescimento, a cada dia, de invasões a áreas ambientalmente protegidas, aqui compreendidas as unidades de conservação mencionadas no § 1º, do art. 40, da Lei 9.605/98, as áreas de preservação permanente definidas pelo Código Florestal (arts. 2º e 3º), aquelas protegidas diretamente pela Constituição Federal como patrimônio nacional (art. 225, § 4º), enfim, todas as áreas dotadas de proteção ambiental.

 

                     Convém frisar que essas invasões são efetuadas não apenas pela população de baixa renda, mas também por grandes especuladores imobiliários.

 

                     Assim, vêm sendo ocupadas áreas de parques, mangues, matas ciliares, nascentes, mananciais, enfim, áreas dotadas de proteção ambiental, algumas delas, inclusive, protegidas pela Carta Magna, como a Mata Atlântica e a Serra do Mar, como é o que ocorre na região da Baixada Santista, especialmente no município de Cubatão.

 

                     Oportuno anotar que referidas invasões causam imensa e grave degradação do meio ambiente, posto que ocasionam destruição de fauna e flora, desaparecimento de espécies, poluição de rios, solo, subsolo e lençol freático, etc.    

                     Entretanto, o que se vê é a total omissão do Poder Público no cumprimento de seu dever constitucional de defender e preservar essas áreas, o qual apenas assiste passivamente ao crescimento devastador dessas invasões, causadoras de intensa e grandiosa degradação ambiental, não atuando, quer de maneira preventiva, quer de maneira repressiva, para evitá-las e, assim, assegurar a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 

                     Isso sem mencionar que, muitas vezes, o próprio Poder Público é o maior incentivador dessas invasões, fomentadas e defendidas por políticos inescrupulosos, fundadas na política do clientelismo, em total desrespeito à ordem jurídica constitucional e ao próprio Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual deve ser combatida com rigor.

 

4. Da caracterização do Poder Público como poluidor.

 

                     O Poder Público possui vários instrumentos para a efetivação da proteção do meio ambiente, verdadeiros poderes-deveres, previstos na própria Carta Magna, na Constituição do Estado de São Paulo, bem como nas normas infra-constitucionais pertinentes à matéria, dentre as quais podemos destacar as Leis de Política Nacional e Estadual do Meio Ambiente, que vão desde a edição de normas protetivas, definição de espaços territoriais especialmente protegidos, planejamento, zoneamento ambiental, fiscalização do uso dos recursos naturais, controle e fiscalização de obras, atividades, processos produtivos e empreendimentos utilizadores de recursos ambientais ou que possam causar, direta ou indiretamente, degradação ao meio ambiente, etc.

 

                     E a atuação do Poder Público na proteção do meio ambiente, conforme já mencionado, é imperativa, obrigatória, não podendo se escusar na denominada discricionariedade administrativa, posto que não há lugar para opções e escolhas na tutela do meio ambiente, face à indisponibilidade desse bem difuso, direito de todos.

 

                     Assim, sem se falar nas muitas vezes em que o Poder Público é o causador direto do dano - o que, infelizmente, vem se tornando comum - quando se omite ou atua de forma deficiente na proteção do meio ambiente, permitindo que se efetive a degradação, deve ser tido como causador indireto do dano ambiental e, consequemente, poluidor.

 

                     A Lei 6.938/81 define, em seu art. 3º, Inc. IV, como “poluidor: a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”, definição repetida no art. 3º, Inc. IV, da Lei Estadual nº 9.509/97.

 

                     No tocante a essa questão, vale trazer à colação a lição das palavras de Antônio Herman Vasconcellos Benjamin, em comentário à norma supra referida   que “O Direito brasileiro, portanto, referindo-se à causalidade, qualifica como poluidor não só aquele que diretamente provoca ou pode provocar degradação ambiental, mas também aqueles sujeitos que indiretamente (= por ação ou omissão remota) contribuam para o resultado degradador”.

 

                     E continua, “...nesse ponto, ainda cabe sublinhar que o nosso ordenamento não exclui ou estabelece um regime jurídico diferenciado para os entes públicos em matéria de degradação ambiental, como é o caso de precedentes no Direito comparado. Tanto quanto o particular, o Poder Público (como pessoa jurídica, e seus integrantes ou servidores, como pessoas físicas) pode vir a ser tachado de poluidor e, em seguida, responsabilizado”.

 

                     Forçoso concluir, portanto, que, na medida em que o Poder Público tem o dever, frise-se, constitucional, de defender e preservar o meio ambiente, do qual decorre que deve precipuamente prevenir a ocorrência de danos, e nada faz para impedir as invasões às áreas ambientalmente protegidas, causadoras de grave degradação ambiental, deve ser tido como o causador indireto desses danos.

 

                     Como consequência, o Poder Público é parte legítima para figurar no pólo passivo de ações civis públicas visando a desocupação e recuperação dessas áreas, bem como indenização e/ou compensação pelos danos irreparáveis causados (sempre presentes), além de pedido de obrigação de fazer consistente basicamente no cumprimento do dever de fiscalizar adequadamente esses locais, de modo a impedir a ocorrência de invasões, e obrigação de não fazer, consistente em abster-se de degradar ou permitir que se degrade tais locais.

 

                     E poderá ocupar o pólo passivo de tais ações em caráter exclusivo ou solidário com o causador direto do dano.

 

                     Nesse sentido a lição do ilustre Magistrado Paulista Álvaro Luiz Valery Mirra ao afirmar que “torna-se possível exigir coativamente até, e inclusive pela via judicial, de todos os entes federados, o cumprimento efetivo de suas tarefas na proteção do meio ambiente”.

 

                     Somente a fiscalização eficiente dessas áreas pelo Poder Público pode evitar a ocorrência de invasões e, assim, prevenir que graves degradações ambientais continuem a ocorrer, cumprindo aquele o seu dever constitucional de defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 

                     Note-se que não cabe ao Poder Público se escusar sob a alegação de  insuficiência de recursos humanos ou materiais para o cumprimento de seu dever.

 

                     Ao contrário, a insuficiência de recursos humanos e/ou materiais junto aos órgãos públicos ambientais para o exercício de uma fiscalização eficiente, capaz de prevenir a ocorrência de danos ao meio ambiente, deve ser tida até mesmo como causa direta da degradação ambiental.

 

                     O Poder Público tem o dever de dotar tais órgãos de meios humanos e materiais suficientes e adequados para o exercício efetivo e eficiente de seu dever constitucional de defesa e proteção do meio ambiente.

          

                      No entanto, o que se vê em nosso país, e é o que estamos assistindo ocorrer no Estado de São Paulo, é o verdadeiro desmonte e sucateamento dos órgãos públicos ambientais, inclusive aqueles responsáveis pela fiscalização e controle das áreas ambientalmente protegidas.

 

                     A omissão e o descaso do Poder Público propiciam, assim, as invasões, com a consequente degradação do meio ambiente, que resulta na deterioração da qualidade de vida da população, posto que causam a poluição de rios responsáveis pelo abastecimento de água das cidades, solo, subsolo, lençol freático, danos à fauna e à flora, inclusive com o desaparecimento de espécies, riscos de desmoronamentos, etc.  

 

                     Esclareça-se que nos locais onde esses fatos ocorrem, os Municípios limitam-se, em regra, a cadastrar os invasores, enquanto os Estados a autuá-los por crime ambiental, o que demonstra que têm ciência dos fatos, porém nenhuma medida adotam de caráter preventivo ou mesmo repressivo, a nível administrativo ou judicial. 

 

                     Neste ponto cabe ressaltar que, conforme o disposto no art. 5º, “caput”, da Lei 7.347/85, a União, os Estados e os Municípios estão legitimados para a propositura de ação civil pública visando à proteção do meio ambiente, o que atende ao interesse público.

 

                     A par disso, cada Município possui ou deve possuir um plano diretor e/ou um Código de Posturas e Edificações, podendo cumprir seu dever constitucional até mesmo em âmbito administrativo, sem a necessidade de socorrer-se do Poder Judiciário, com o imediato embargo e posterior demolição de qualquer obra que esteja sendo construída em área invadida objeto de proteção ambiental.

 

                     Contudo, o Poder Público prefere, na maioria das vezes, cruzar os braços e assistir passivamente efetivar-se o dano ambiental e instalar-se o caos social.

                               

                     Esses fatos, revelam, mesmo, a conivência do Poder Público com o que vem ocorrendo, dando assim, causa, ainda que indiretamente, a graves danos ambientais, conduta (ou omissão) inaceitável, que merece repressão e responsabilização rigorosas.          

 

CONCLUSÕES

 

1. O Poder Público tem o dever constitucional de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, de forma a garantir a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 

2. Toda vez que o Poder Público se omitir no cumprimento do dever constitucional de proteção do meio ambiente ou exercê-lo de forma deficiente, contribuindo, direta ou indiretamente, para a ocorrência de invasões em áreas ambientalmente protegidas, causadoras de degradação do meio ambiente, deverá ser considerado poluidor.

 

3. O Poder Público, como poluidor, face à omissão e/ou exercício deficiente do dever de proteção do meio ambiente, poderá ser sujeito passivo em ações civis públicas visando a desocupação e recuperação dessas áreas, assim como indenização e/ou compensação pelos danos irrecuperáveis causados, além de obrigação de fazer consistente no cumprimento daquele dever, em caráter exclusivo ou solidário com o causador direto do dano.

 

4. A deficiência de recursos humanos e/ou materiais dos órgãos públicos responsáveis pela fiscalização e controle das áreas ambientalmente protegidas deve ser considerada causa direta ou indireta da degradação do meio ambiente.

 

 

Bibliografia:

 

SILVA, José Afonso da – Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, 1992, Ed. Malheiros.

 

MAZZILLI, Hugo Nigro – A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, São Paulo, 1995, Ed. Saraiva.

 

MILARÉ, Édis - Direito do Ambiente, São Paulo, 2000, Editora RT. 

 

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha – Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável, São Paulo, 1997, Ed. Max Limonad.

 

BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos - Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro, in Manual Prático da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, 2ª ed., São Paulo, 1999, IMESP.

 

MIRRA, Álvaro Luiz Valery - Princípios Fundamentais do Direito Ambiental, in Revista de Direito Ambiental, São Paulo, 1996, Editora RT.

 


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