SEMINÁRIO:

POLUIÇÃO INDUSTRIAL E
CONTAMINAÇÃO HUMANA NO BRASIL

 

 

Caso: Contaminação por POPs - Poluentes Orgânicos Persistentes
Relator: João Carlos Gomes
ACPO-Associação de Combate ao POPs - Santos- SP




"... o quadro nosológico humano e o grau de equilíbrio do nosso ecossistema (em outras palavras, a patologia humana e a patologia ambiental) representam duas entre as medidas mais eficazes para julgar tanto o bem-estar como o desenvolvimento em uma dada sociedade."

Berlinguer, G
in "Medicina e Política"

 

1. Poluentes Orgânicos Persistentes - POPs. 


Os Poluentes Orgânicos Persistentes são substâncias tóxicas. Os POPs estão se disseminando pelo planeta e são repassados de geração a geração, acumulando-se no meio ambiente e nos corpos das pessoas, animais e plantas. Estas substâncias tóxicas são geradas em diversos processos industriais que empregam cloro e derivados do petróleo. Os POPs são tóxicos aos seres vivos, acumulam-se nos microorganismos, plantas, animais e também no Ser Humano, não sendo eliminados pelos organismos com facilidade e demandando décadas para tal. Resistentes à degradação química, biológica e fotolítica (da luz), afetam a saúde humana e os ecossistemas, mesmo em pequenas concentrações. Em maio último, noventa países (Brasil inclusive) assinaram um Tratado Internacional de Banimento dos doze POPs considerados mais perigosos para o meio ambiente e a saúde pública, em Estocolmo/Suécia. A dúzia suja alvo desta campanha de proscrição é composta por, em ordem alfabética: Aldrin, Clordano, Dieldrin, DDT, Dioxinas, Furanos, Endrin, Heptacloro,Hexaclorobenzeno (HCB), Mirex, Policloretos de Bifenilas (PCBS) e Toxafeno.
O maior episódio de contaminação ambiental e exposição humana aos POPs no Brasil ocorreu na Baixada Santista, estado de São Paulo, e foi causado pela multinacional de origem francesa Rhodia.


2. A origem dos POPs.


Os POPs eram até há pouco tempo chamados de ORGANOCLORADOS, sendo a atual denominação estabelecida recentemente para uniformizar e facilitar as discussões sobre o tema. São substâncias na sua quase totalidade sintéticas, ou seja, não ocorrem com freqüência no meio ambiente - com poucas exceções representadas por substâncias químicas similares produzidas por animais, plantas e fenômenos naturais - surgindo quase que totalmente como produtos principais ou subprodutos indesejáveis (impurezas ou "resíduos" como chamam os operários da indústria química) da reação do gás cloro com derivados de petróleo (hidrocarbonetos - substâncias que contém carbono e hidrogênio apenas). 
Historicamente, os organoclorados começaram a ser produzidos por dois motivos: 
Primeiro, porquê uma das principais matérias-primas da indústria química é a soda cáustica (hidróxido de sódio), indispensável na chamada indústria de base mas que possui um grave problema: sua fabricação gera necessariamente a produção de gás cloro. Este passou a ser um empecilho, pois tinha pouca utilização e simplesmente não pode ser liberado para a atmosfera por ser letal, matando por asfixia e irritação das mucosas (nos EUA, inicialmente chegou a ser descartado em cilindros em alto mar). A sua utilização em sínteses com derivados de petróleo foi considerada a solução para o impasse. 
Segundo, porquê os novos produtos criados (organoclorados) apresentavam várias propriedades, como solventes, propelentes, inseticidas, plásticos se polimerizados, etc, os quais possuíam ainda uma característica considerada inicialmente uma dádiva: seus efeitos eram duráveis, o que considerava-se um ganho econômico (imagine-se, por exemplo, um inseticida cuja única aplicação perdurasse anos!).
Estas características, somadas à abundância e baixo preço do cloro (o segundo elemento em ocorrência na natureza) fornecido pela indústria de cloro/soda fizeram a produção e utilização de organoclorados prosperar e crescer ilimitadamente. Até 1.996 já eram conhecidos mais de 11.000 organoclorados distintos produzidos nas sínteses industriais, utilizados nas mais variadas formas de aplicação: desde pesticidas e plásticos até pastas de dentes e soluções para higiene bucal.


3. O alerta da natureza: a "Primavera Silenciosa".


A persistência dos organoclorados no ambiente, bem ao contrário de uma dádiva revelaria-se uma verdadeira maldição: sua elevada toxicidade dificulta a ação de microorganismos naturais responsáveis pela biodegradação e reciclagem de matéria orgânica em disponibilidade no ambiente, o que equivale dizer que a tendência natural é de observarem-se níveis cada vez maiores destas substâncias no ambiente global, uma vez que sua produção continua em escala mundial.
Com sua ocorrência detectada em quantidades cada vez mais preocupantes em todas as partes do planeta, inclusive nas calotas polares - para onde aparentemente migram carreadas por ventos e correntes marítimas intercontinentais num fenômeno chamado pelos ambientalistas de destilação global - também os seres vivos começaram a incorporar estas toxinas em seus tecidos e fluidos orgânicos. Este fenômeno permitiu uma nova constatação a respeito dos POPs: suas comprovadas propriedades bioacumulativas (em especial no tecido adiposo de espécimes expostos) e de biomagnificância (acúmulo exponencial nas espécies localizadas no topo da chamada cadeia alimentar). Inicialmente, foram detectadas concentrações de POPs na fauna e na flora de regiões industrializadas, sendo que hoje existe consenso de que a expansão da contaminação se torna cada vez mais importante, e que inclusive o Ser Humano não escapa ileso desta situação. Níveis crescentes de organoclorados como DDT e PCBs entre outros começaram a ser observados em populações humanas, inclusive nos esquimós habitantes do Círculo Polar Ártico, confirmando a facilidade de dispersão destes poluentes por todo o planeta. 
Paralelamente, foram constatadas o declínio de populações e a ocorrência alarmante de anomalias em espécies animais cujo habitat contaminado por POPs, simultaneamente, ofereceram as primeiras evidências sobre o nexo de causalidade entre estas ocorrências. A naturalista norte-americana Rachel Carlson em 1.962 denunciou pela primeira vez esta situação em seu livro cujo título - "Primavera Silenciosa" - fazia alusão ao fenômeno observado, entre outros, na extinção das aves pescadoras da região dos Grandes Lagos na divisa dos Estados Unidos e Canadá.
Da mesma forma, a percepção de que o Homem também estava vulnerável a estas perturbações começou a se tornar cada vez mais iminente, e vários cientistas começaram a investigar esta possibilidade aterradora.


4. "O Futuro Roubado", será este o legado do Ser Humano?


São crescentes os estudos e pesquisas científicas que apontam o surgimento e crescimento sem precedentes de distúrbios no Ser Humano e sua correlação com a exposição aos POPs. Os adversários desta corrente de pesquisadores e cientistas não costumam apresentar argumentos contrários satisfatórios e comumente recorrem ao chamado benefício da dúvida, afora muitas vezes se descredenciarem ao debate em face do Princípio do Conflito de Interesses, uma vez que vários deles têm suas "pesquisas" financiadas com recursos oriundos direta ou indiretamente de grandes corporações multinacionais da indústria química interessadas na manutenção da produção de organoclorados.
Já os defensores da proscrição dos POPs são categóricos: é cada vez maior a incidência de câncer em populações comprovadamente expostas ambientalmente a estes tóxicos, assim como distúrbios reprodutivos têm demonstrado aumento preocupante entre as populações mais jovens, provavelmente como conseqüência da exposição de seus pais e avós - além da própria em intensidade cada vez maior - a estes poluentes. Também disfunções metabólicas e hormonais, estas últimas sobretudo na glândula tireóide, têm sido observadas sem que outras alternativas quanto a nexo de causalidade consigam embasamento científico na mesma proporção e contundência que os estudos a respeito dos efeitos dos POPs. Nos diversos estudos e relatos de caso de origem ocupacional o nexo de causalidade se consagra como fato consumado: nos operários de indústrias químicas produtoras, manipuladoras, armazenadoras, transportadoras e mesmo destruidoras de substâncias organocloradas as incidências de distúrbios neurocomportamentais (sabidamente relacionados aos efeitos neurotóxicos destas substâncias) e hormonais, acrescidos de elevados índices de morbidade e mortalidade precoce são irrefutáveis.
Em especial os efeitos sobre a reprodução humana merecem atenção: nos países da Escandinávia, que possuem os mais antigos e completos bancos de dados sobre fertilidade masculina (que remontam à Segunda Guerra Mundial), o decréscimo na contagem e o aumento alarmante de anomalias funcionais nos espermatozóides já foram comprovados. Também no Japão, onde funcionam vários incineradores de lixo geradores de dioxinas, o fenômeno vêm sendo observado com preocupação. Enquanto os debates se acentuam entre prós e contras, proliferam em todo o mundo técnicas e clínicas de "fertilização assistida".
Além destes distúrbios do aparelho reprodutor humano, uma nova teoria sobre os POPs ganha força e adeptos entre os cientistas, entre eles a pesquisadora Théo Colborn, autora do livro "O Futuro Roubado" - que como sugere o título discorre sobre o prejuízo iminente às futuras gerações - que demonstra especial preocupação com alterações comportamentais e rebaixamento da intelectualidade em crianças e adolescentes. A teoria dos "Interferentes Hormonais (Disruptors Endocrine)" ou "Agentes Hormonalmente Ativos", já comumente chamados de hormônios ambientais defende a tese, baseada em inúmeras evidências científicas, de que os POPs influem negativamente sobre o sistema endócrino humano, confundindo o metabolismo e provocando alterações funcionais graves. Segundo a teoria (alvo de um amplo estudo por parte de uma comissão de peritos especialmente criada para este fim pelo governo dos Estados Unidos), os POPs provocam estas alterações devido ao fato de mimetizarem (imitarem) hormônios naturais que atuam como sinalizadores do organismo humano - em especial o estrógeno - desencadeando processos ou inibindo-os de maneira desordenada. No Brasil, esta polêmica não ganhou força ainda e é praticamente ignorada pelos meios de comunicação, com poucas exceções como uma matéria da Folha de São Paulo ("País ainda ignora ameaças à fertilidade") em sua edição de 12 de setembro de 1.999, que aborda a acirrada discussão acadêmica nos países desenvolvidos e a ausência de fenômeno semelhante no Brasil.



5. Suécia 1.972: o Mundo desperta para a ecologia, o Brasil não.

 

De 5 a 16 de junho de 1.972 na Suécia, representantes de 113 países participam da Conferência de Estocolmo sobre o Ambiente Humano patrocinada pela Organização das Nações Unidas - ONU, atendendo à necessidade de estabelecer uma visão global para a preservação e a melhoria do meio ambiente. A Conferência produz uma documento intitulado "Declaração sobre o Ambiente Humano" que insere no vocabulário mundial conceitos como ecologia e educação ambiental, além de estabelecer um "Plano de Ação Mundial", no qual reconhece o desenvolvimento desta última como o elemento crítico para o combate à crise ambiental representada pela queda na qualidade de vida ocasionada pela poluição e a atuação predatória sobre os recursos naturais.
Considerada um marco histórico internacional decisivo para o surgimento de políticas de gerenciamento do ambiente e de reconhececimento oficial acerca dos problemas ambientais gerados pela revolução industrial principalmente, a Conferência proporciona também a controvérsia e a acirrada disputa entre os grupos denominados preservacionistas e desenvolvimentistas. Representantes de países em desenvolvimento acusam os países ricos de querer limitar seus programas de industrialização usando como pretexto a necessidade emergente de controle da poluição como forma de inibir o aumento da competitividade dos países pobres. A posição mais ousada entre os integrantes desta última corrente é aquela protagonizada pela delegação brasileira (liderada pelo ministro do interior, Costa Cavalcante, signatário do AI-5 e depois presidente da binacional Itaipu): "Bem vindos à poluição, estamos abertos para ela. O Brasil é um país que não têm restrições. Temos várias cidades que receberiam de braços abertos a sua poluição, porque o que nós queremos são empregos, são dólares para o nosso desenvolvimento", estampa um cartaz exibido orgulhosamente pelos delegados brasileiros, que argumentavam que o aumento no Produto Nacional Bruto compensava o custo da degradação ambiental. 
A posição manifestada pelos representantes da Ditadura Militar que comandava o país arbitrariamente na ocasião recebe repúdio generalizado, acusada de sabotar os princípios da Conferência e estabelece um verdadeiro escândalo internacional, que passa despercebido da opinião pública no Brasil devido à prática da censura nos meios de comunicação nacionais. 
Ainda embaladas pela conquista do tri-campeonato mundial de futebol no México dois anos antes, e iludidas pelas promessas de riqueza do "Milagre Econômico" brasileiro, as populações de cidades e regiões bucólicas do Brasil (como a Baixada Santista, o ABC paulista, o Vale do Paraíba e a região de Campinas só para citar exemplos paulistas) tinham alí seu destino de degradação ambiental e conseqüente prejuízo à saúde pública definido de forma totalmente unilateral e prepotente. Quase três décadas depois, além da poluição do ar e das bacias hidrográficas, os depósitos clandestinos de lixo tóxico no solo do estado mais industrializado do país - como uma espécie de sujeira varrida para debaixo do tapete em que os POPs têm lugar assegurado - atestam a condição obsoleta já à época das indústrias que viriam compor o atual parque industrial brasileiro.



6. O "Caso Rhodia/Baixada Santista": a aposta na impunidade.


Não foi por acaso portanto, que a ampliação e a consolidação do pólo petroquímico de Cubatão coincidiu com o regime iniciado pelo golpe militar de 1.964, tendo ganhado impulso com a instalação de multinacionais a partir da desastrosa posição brasileira na Conferência de Estocolmo sobre o Ambiente Humano. Uma das principais metas dos militares era abrir a economia para as multinacionais e entrar para o mundo capitalista moderno. Cubatão foi o exemplo mais concreto desse modelo equivocado de desenvolvimento. O pólo industrial ultrapassado produziu uma das cidades mais poluídas do planeta, tristemente rotulada de "O Vale da Morte". A repressão política de um lado e a exploração do Homem e da Natureza de outro - ambas visando o poder e o lucro - forjaram a circunstância perfeita para o desastre ambiental e humano. As grandes corporações da indústria química mundial encontraram no Brasil uma verdadeira garantia de impunidade, contrastando com a maior organização social e opinião pública crítica em seus países de origem, responsáveis por rígidas exigências de controle e prevenção de riscos aliadas à rigorosa fiscalização estatal. O Duplo Padrão então estabelecido deixou marcas que somente hoje a sociedade brasileira começa a se dar conta.
Entre estas corporações a Rhône-Poulenc (estatal francesa) proprietária da Rhodia S.A., que segundo documentos apresentados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo já era desde 1.972 responsável pelo controle acionário da Clorogil S.A., empresa estabelecida em 1.965 através de uma sociedade entre a Progil Socyeté Anonyme (também francesa) e a Carbocloro Indústrias Químicas (fato que desmente as alegações da Rhodia sobre sua isenção na constituição do passivo ambiental, atribuída por esta unicamente à Clorogil).
A Clorogil produzia o pentaclorofenato de sódio, popularmente conhecido como o "Pó da China" - em virtude de um episódio de contaminação que vitimou estivadores do porto do Rio de Janeiro numa operação de descarga do produto importado da China - cupinicida hoje banido mundialmente, cuja produção em Cubatão se arrastou até o fechamento da fábrica em 1.978, sob pressão da opinião pública diante das denúncias de duas mortes de trabalhadores com indícios de intoxicação aguda (Márcio de Andrade aos 32 anos em 1.975 - apenas uma semana após sua admissão - e Vanderval Leão Santana aos 28 anos em 1.978) e seqüelas comprovadas nos demais. Os trabalhadores conseguiram a muito custo, sob intensa pressão e apenas oito anos depois (1.986), um Acordo Coletivo firmado no Ministério do Trabalho - através da Delegacia Regional de São Paulo - em que a empresa concordava em conceder estabilidade no emprego e assistência médica vitalícias. Antes disso, como demonstração clara do descaso com que tratava o assunto, a Rhodia chegou ao ponto de pagar para uma clínica esteticista de Santos promover a limpeza facial da pele dos operários, devido ao constrangimento representado pelas cloracnes (cistos sebáceos indicadores de exposição a clorofenóis, chamados comumente pelos trabalhadores de "caroços") que se apresentavam também no restante do corpo. Um destes operários - Francisco Alves de Moura Filho - teve de se submeter a quarenta e oito (48) pequenas cirurgias para extração destes cistos, que reaparecem ainda hoje em seu corpo. Apesar da conquista do Acordo Coletivo, a maior parte destes contaminados pelo Pó da China, no entanto, seria realocada de maneira irresponsável na nova unidade de produção de solventes clorados da fábrica, onde ficariam expostos também a estes e a seus resíduos de fabricação, em especial o Hexaclorobenzeno (HCB).
Esta nova unidade de solventes surgiu como conseqüência direta da postura governamental na Suécia. A "Usina Química de Cubatão - UQC", destinada a produzir Tetracloreto de Carbono (matéria-prima para o gás Freon, que destrói a camada de ozônio) e Percloroetileno (desengraxante utilizado na indústria automobilística e também por lavanderias como as da rede francesa "5 à Sec" na chamada limpeza à seco) foi planejada e projetada em empreendimento conjunto entre a Rhône-Poulenc e a Progil. Os estudos técnicos para a implantação ficaram a cargo da subsidiária Rhodia (Rhône-Poulenc) e a tecnologia e os equipamentos importados da França a cargo da subsidiária Clorogil (Progil), tudo com financiamento garantido pelo Banco Central do Brasil.
Em 1.974 a UQC inicia suas atividades produzindo 18.000 toneladas/ano de solventes conforme informações da própria empresa, mas não existem números oficiais sobre a quantidade de resíduos industriais gerados como sub-produtos. Hoje sabe-se no entanto, o destino dos mesmos: até meados de 1.976, aproveitando-se da ausência de legislação a respeito da destinação de rejeitos, a multinacional deposita-os diretamente no sub-solo da fábrica sem o emprego de qualquer medida de contenção geotécnica. A partir deste mesmo ano, a empresa altera sua razão social adotando definitivamente a identidade Rhodia S.A. como proprietária da fábrica. 
O ano de 1.976 também marca uma nova etapa da devastação ambiental: diante da ausência de espaço físico no interior da UQC, a empresa inicia o descarte indiscriminado ao longo das Rodovias Pedro Taques e Manoel da Nóbrega - rumo ao litoral sul do estado - estrategicamente escolhido por ser, à época, povoado apenas por poucos sitiantes semi-analfabetos. Estes sitiantes, conforme relato dos motoristas que realizavam o transporte do material tóxico, eram convencidos de que se tratava de "adubo", e desta forma aceitavam o descarte em suas propriedades ou ao redor delas, para posteriormente cultivarem hortaliças, leguminosas e árvores frutíferas diretamente sobre os lixões. A empresa responsável por este transporte e descarte - "Luiz Vilmar Cordeiro" - assinou contrato de prestação de serviços com a Rhodia apenas 48 horas depois de promulgada a então pioneira "Lei do Meio Ambiente" do Estado de São Paulo. Outra empresa, a "Colomaq - Máquinas, Equipamentos e Serviços Ltda." também é contratada (por um período de dois anos) já em 1.978 para o mesmo serviço. Baseadas nestes documentos e na média de geração de resíduos tóxicos nos anos de operação, as estimativas oficiais apontam o descarte mínimo de doze mil (12.000) toneladas de POPs no ambiente externo, sem considerar o depósito da própria fábrica, omitido até 1.993 pela empresa. 
A primeira empresa era de propriedade de um ex-funcionário da Rhodia, que demitiu-se sob incentivo da empresa, que adquiriu os dois caminhões usados no transporte e a área do Quarentenário (local do despejo mais importante e de propriedade da União) que foi registrada no nome da esposa do ex-funcionário. Os traslados eram noturnos, e curiosamente poderiam ter sido precocemente denunciados e coibidos: numa ocasião, um dos caminhões envolveu-se num acidente com uma viatura da Polícia Rodoviária, que quase foi soterrado pelos resíduos tóxicos. Os policiais foram até a fábrica cobrar explicações, mas o assunto foi contornado com "habilidade" pelo gerente local.
Também em 1.978, a CETESB (já criada e em plena atividade como órgão de controle ambiental do estado) publica o relatório "Resíduos Sólidos Industriais na bacia do Rio Cubatão - VI", em que identifica os despejos de POPs realizados pela Rhodia até então. Não adota no entanto, nenhuma medida de alerta à população exposta, assim como nenhuma ação cautelar é tomada pela agência. Anos mais tarde, o então gerente da regional da CETESB - Sérgio Alejandro - seria afastado pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo (gestão Fábio Feldman) acusado de "negligência" no Caso Rhodia, e o próprio Ministério Público (a cargo do então promotor Emanuel Burle Filho) ajuizaria ação contra a agência por omissão na questão. 



7. Na década de 80, a descoberta dos depósitos clandestinos pela sociedade: um escândalo precursor dos atuais.


Com a expansão imobiliária e a conseqüente ocupação dos locais de despejo clandestino, aconteceu o inevitável: a população de baixa renda se deparou com clareiras mal-cheirosas e repletas de "blocos amarelos" (pedras formadas por agregação dos POPs), que provocavam alergias na pele além de tonturas e náuseas aos que delas se aproximavam. Com a denúncia destas comunidades à imprensa em 1.984, o caso veio à tona. A imprensa nacional deu pouca divulgação ao fato, que ficou restrito basicamente ao noticiário regional, em tom muitas vezes sensacionalista e pouco investigativo (no livro "Portas Abertas - A experiência da Rhodia: novos caminhos da comunicação social na empresa moderna", os jornalistas Célia Valente e Walter Nori classificam o fato como sendo motivo de sorte da empresa e incompetência da imprensa. No mesmo livro, a narrativa distorce os fatos documentados e gera dúvidas sobre a possível cooptação da imprensa local num momento posterior).
As amostras analisadas a cargo da CETESB provocaram tamanha contaminação nos laboratórios da agência que os mesmos foram interditados por três semanas para limpeza. O presidente da agência na ocasião - Werner Zulauf - confessaria anos mais tarde em entrevista ao jornal "O Globo" que recebeu ordens diretas do então governador Paulo Salim Maluf para abafar o caso, que já havia chegado ao conhecimento do presidente francês François Mitterand.
Foi instaurada uma Ação Civil Pública pela Curadoria do Meio Ambiente de São Vicente (que resultaria somente dez anos depois na condenação da empresa), e somente então a Rhodia isolou as áreas e iniciou a remoção do solo contaminado para uma "Estação de Espera" construída às margens da Rodovia Pedro Taques, dando também início à construção de um incinerador de resíduos sólidos na área da fábrica em Cubatão destinado a destruir todo o material contaminado. Tudo ao custo de quarenta (40) milhões de dólares, segundo a empresa. A Secretaria de Saúde do Estado iniciou o monitoramento epidemiológico da população (denominado de "Projeto Samaritá") que além de residir no entorno dos lixões expostos, consumia água de poços artesianos e pescado oriundo dos manguezais adjacentes (onde a CETESB detectou elevados níveis de contaminação pelos POPs). Os exames iniciais apontaram níveis significativos de Hexaclorobenzeno (HCB) no sôro sangüíneo e no leite materno de moradoras locais. 
A descoberta deu início a uma verdadeira caça aos lixões químicos da Rhodia, com a descoberta ao todo de onze (11) depósitos, o mais distante em Itanhaém (há mais de 60 Km de distância da fábrica) localizado às margens do Rio Preto. Em Cubatão, foi descoberto um depósito às margens do Rio Perequê, que provocou por muito tempo a interdição do "Parque Ecológico" (mantido pela prefeitura do município) localizado próximo ao mesmo. Ainda em Cubatão, os POPs da Rhodia também predominam num depósito clandestino comum das indústrias (repleto também de hidrocarbonetos e metais pesados) situado às margens do Rio Pilões - manancial que abastece boa parte da Baixada Santista - num ponto perigosamente próximo à captação de água da SABESP. Estes lixões químicos tornaram a Rhodia ré em três (3) Ações Civis Públicas em Cubatão, São Vicente e Itanhaém, com estimativas oficiais de comprometimento de mais de trezentas mil (300.000) toneladas de solos e águas subterrâneas, e a provável exposição aos POPs de cerca de dez mil (10.000) moradores locais. E é possível que ainda existam novos depósitos não descobertos.
No município mais afetado - São Vicente - enquanto a Ação Civil Pública se arrastava nos trâmites burocráticos, um vereador local denunciava o problema, já no início da década de 90 (1.992), ao governo federal. Em atendimento, dois técnicos da Secretaria Nacional do Meio Ambiente (Sebastião Pinheiro e Jairo Restrepo) enviados para estudar o caso efetuam um amplo levantamento da situação e recomendam a retirada da população (cada vez maior) das áreas afetadas e propõem o isolamento da região, com sua respectiva transformação numa reserva de estudos sobre o impacto dos POPs sobre a fauna e a flora locais. Também criticam o método escolhido para destruição dos estoques de lixo tóxico: a incineração. No livro "A Agricultura Ecológica e a Máfia dos Agrotóxicos no Brasil" - em que relatam o episódio - estes especialistas demonstram especial preocupação com a exposição humana (tanto operários como moradores contaminados) às dioxinas, provavelmente presentes nos lixões e nos gases emanados pelo incinerador em Cubatão. O então secretário José Lutzemberger encaminha pessoalmente relatório ao presidente Fernando Collor de Melo, que não toma nenhuma atitude a respeito. 
Paralelamente, neste mesmo período, contando com recursos estaduais é inaugurada a "Ponte A Tribuna" (nome dado em homenagem ao principal jornal da Baixada Santista) que liga a parte insular de São Vicente à parte continental do município - onde ficam os depósitos - tendo como conseqüência a ocupação definitiva da região contaminada. A Rhodia investe decisivamente numa campanha de marketing tentando melhorar sua imagem na região, asfaltando ruas e urbanizando logradouros públicos. Neste mesmo período, a Prefeitura Municipal - estranhamente - declina da condição de litis-consorte na Ação Civil Pública movida pelo MP. Enquanto isso, o "Projeto Samaritá" é municipalizado e logo depois interrompido por falta de destinação de verbas, enquanto a ocupação desordenada pela população de baixa renda ganha impulso. Curiosamente, o principal grileiro da região, conhecido pelo vulgo de "Maguila" (ainda hoje líder comunitário na área) é visto pelos operários da empresa neste mesmo período visitando a fábrica em Cubatão com certa freqüência.
O Caso Rhodia/Baixada Santista parecia caminhar para o esquecimento longe de uma conclusão satisfatória, quando uma quarta Ação Civil Pública, novamente em Cubatão, seria instaurada quando da descoberta do depósito no subsolo da fábrica e a conseqüente interdição judicial da unidade (em junho de 1.993), que perdura até hoje. Dezenove (19) anos depois do início das atividades industriais e do despejo de POPs no ambiente da Baixada Santista.



8. Usina Química Cubatão - 1.993: o fechamento de uma fábrica que jamais deveria ter existido.


Após o fechamento da unidade de produção do "Pó da China" em 1.978 e a realocação de seus operários na unidade de produção de solventes (chamada de Tetraper), a área industrial da UQC receberia na inauguração do incinerador de resíduos sólidos em 1.986 - implantado sem a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) - mais uma fonte poderosa de contaminação ambiental. 
O especialista Sebastião Pinheiro em suas críticas ao projeto do Sincre (nome dado pela empresa), cita o professor Peter Krauss da Universidade de Tubigen (Alemanha) que afirmava já à época que "os incineradores atualmente no mercado são considerados tecnologia obsoleta. Só a Alemanha têm domínio da tecnologia de incineração sem risco de emitir dioxinas, e a mesma custa 1 bilhão de dólares". Ainda segundo o então técnico do governo federal, o incinerador importado da França pela Rhodia apresentava uma eficiência 10.000 (dez mil) vezes inferior aos equipamentos alemães. 
Uma intrigante atitude da Rhodia por ocasião da contratação de funcionários para a operação do forno confirma estas afirmações: nas entrevistas do processo de seleção, a empresa evidenciava sua preocupação com a possibilidade das emanações provocarem anomalias nos descendentes dos funcinários expostos às mesmas, uma vez que manifestava informalmente preferência por aqueles com mais de 30 anos de idade, casados e sem pretensões de gerar novos filhos. Com o equipamento já em operação, esta preocupação foi abandonada em novas contratações, talvez pelo fato de já produzir suspeitas entre os funcionários. Desta forma, a empresa operou este equipamento obsoleto com o agravante de fazê-lo de forma irregular - sem respeitar os padrões operacionais de segurança - visando maior rapidez na eliminação dos estoques de solo contaminado que não paravam de se acumular na "Estação de Espera". 
Todo o monitoramento das emissões do forno (líquidas e gasosas) e das cinzas "incineradas" foi colocado pela CETESB sob a responsabilidade da própria Rhodia, uma vez que não existe no Brasil um único laboratório público capacitado tecnologicamente para a pesquisa de dioxinas e furanos (ainda hoje, oito anos depois da interdição da UQC, é a própria poluidora que monitora seus lixões químicos, com autorização da CETESB). Apenas uma vez por mês uma equipe de Paulínea coletava amostras para análises naquela cidade, pois segundo a empresa o ambiente da UQC não permitia a realização destas análises por conter muitos contaminantes que poderiam interferir nas mesmas, realizadas em equipamentos importados muito sensíveis (era quase uma confissão oficial sobre o conhecimento a respeito da contaminação da UQC). Mesmo esta coleta era manipulada pela empresa, pois o forno não recebia nestas ocasiões nem 10 (dez) por cento da quantidade rotineiramente incinerada, que perseguia recordes mensais, apesar dos limites de segurança determinados pela CETESB. Um exemplo foi o mês de julho de 1.989, quando a empresa brindou seus operários com um churrasco em comemoração às 1.904 toneladas incineradas naquele mês, quando segundo as normas de segurança o máximo a ser atingido seria de 1.500 toneladas/mês.
Ao que tudo indica, os planos da empresa visavam a desativação gradual da unidade Tetraper (em virtude da falta de perspectivas para a produção do Tetracloreto de Carbono, cuja principal aplicação era a produção de gases do tipo Freon - CFCs - em banimento mundial devido aos efeitos adversos sobre a camada de ozônio) e a tentativa de tornar as atividades do Sincre lucrativas, a partir da incineração conjunta - mediante cobrança - de resíduos tóxicos de outras indústrias e do solo contaminado removido dos lixões químicos de sua responsabilidade. Em meados de 1.992, a empresa chegou a iniciar a construção de um reservatório para recebimento e estocagem de Ascarel (isolante térmico de transformadores rico em PCBs) com este objetivo, e realizou queimas experimentais noturnas deste material sem autorização da CETESB.
A escavação para construção dos alicerces deste reservatório viria a se transformar numa das causas da interdição de toda a unidade, incluindo fábrica de solventes e incinerador de resíduos tóxicos: da cava começaram a minar para a superfície solventes e POPs enterrados inadeqüadamente e revelando aquele que foi o primeiro de todos os lixões químicos da Rhodia. Simultaneamente, os operários começaram a se dirigir sigilosamente ao Instituto Adolfo Lutz para realização de exames de dosagem de Hexaclorobenzeno no sôro sangüíneo, seguindo orientações de um funcionário - José Nepomuceno dos Santos (um dos contaminados pelo "Pó da China") - que havia descoberto esta nova intoxicação através de seu médico particular. Dos 156 funcionários da empresa, revelaria-se que apenas uma telefonista não apresentava este contaminante no organismo. 
Os trabalhadores encaminharam um denúncia sobre estes fatos ao Ministério Público, através das Curadorias de Meio Ambiente e de Acidentes do Trabalho de Cubatão. Em uma inspeção conjunta entre diversos órgãos, foram comprovadas as denúncias e encomendadas análises à CETESB. Os resultados foram assustadores: os níveis de contaminação encontrados no solo e na poeira em suspensão ultrapassavam em milhares de vezes limites de tolerância em vigor em outros países. Anos mais tarde, o dimensionamento da chamada pluma de contaminação pela empresa especializada CSD - Geoclock apontaria a deposição de 3.784 toneladas de resíduos organoclorados do Tetraper e 20 toneladas de resíduos de "Pó da China" num fosso nos fundos da empresa, além de aproximadamente 20 toneladas de organoclorados no restante do solo da fábrica e aproximadamente 4 toneladas nas águas subterrâneas. Jamais se saberá qual a quantidade de POPs carreada por lixiviação para a calha do vizinho Rio Perequê e deste para o estuário do Rio Cubatão.
Pouco depois da inspeção, a morte suspeita de um funcionário em dezembro de 1.992 - Carlos Alberto Miranda, com trinta e dois anos de idade (vitimado por pneumonia em decorrência de depressão imunológica sem causa definida, com resultado negativo para HIV inclusive) levaria o MP a estudar a elaboração de uma liminar de interdição da UQC sob a alegação de que "o meio ambiente de trabalho não se mostrava compatível com a vida humana". Seis meses depois, a liminar - jamais contestada pela Rhodia - foi solicitada pelo MP e concedida pelo Juízo local. Na madrugada do dia em que a ordem judicial seria cumprida, dirigentes da fábrica arrombam e retiram às pressas todos os prontuários médicos dos funcinários arquivados no Ambulatório, com receio de que os mesmos fossem apreendidos pelo MP para averiguação (este episódio foi relatado em manuscrito com firma reconhecida por um vigilante em serviço na portaria da UQC naquela madrugada). Com a interdição judicial levada a efeito em 7 de junho de 1.993 iniciava-se um nova fase do Caso Rhodia/Baixada Santista.
Desta feita, o escândalo alcançou repercussão internacional, ao contrário da descoberta dos depósitos externos de resíduos tóxicos. A empresa inicialmente negou a intoxicação crônica dos funcionários, para depois defender a tese de que a mesma - já admitida por força dos laudos do Instituto Adolfo Lutz - não representava nenhum prejuízo para os mesmos. O presidente da Rhodia na época, Edson Vaz Musa (único estrangeiro integrante do Comitê Executivo da Rhône-Poulenc, formado à sua exceção só por dirigentes franceses), ironicamente chegou a dar entrevistas afirmando que todos os seres humanos tinham Hexaclorobenzeno no sangue, sem citar no entanto em qual estudo epidemiológico se baseava para tal afirmativa. Musa (compulsoriamente aposentado pela Rhodia) assumiu posteriormente a presidência da fábrica de bicicletas "Caloi" e passou a adotar um discurso nacionalista, em que defende o incentivo governamental à indústria nacional como forma de garantir competitividade perante as multinacionais. O gerente regional da empresa na Baixada Santista, Otacílio Miguel Teixeira Tavares, refletia esta postura dissimuladora diante da imprensa nacional, quando afirmava que "a intoxicação crônica pelo HCB é a doença do futuro". Incoerentemente, quando dirigindo-se à imprensa internacional - especificamente em entrevista para a revista alemã "Geo Magazine" - Tavares declarava categoricamente que "...nenhum Ser Humano deve Ter contato com esta coisa (os POPs), o lugar onde foi depositado é irrecuperável, lá ninguém deve morar, lá ninguém deve cultivar nada, lá ninguém deve beber água". 
Uma Ação Civil Pública foi ajuizada tendo o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas da Baixada Santista como litis-consorte do MP (a ACPO ainda não havia sido fundada), e somente dois anos após, em 1.995 (neste momento já com a atuação da ACPO em virtude da flagrante omissão do Sindicato da categoria nos encaminhamentos da lide), a empresa temendo nova condenação assina um Termo de Ajustamento de Conduta, em que se compromete a descontaminar o ambiente da fábrica - incluindo seu aqüífero subterrâneo - e promover exames médicos periódicos nos contaminados, com garantia de emprego e tratamento para aqueles com qualquer tipo de distúrbio com nexo presumido com a intoxicação. A avaliação dos resultados dos exames, a serem realizados no Hospital Albert Einstein, ficaria a cargo de uma junta médica tripartite.
Em agosto deste ano, a ACPO entrega pessoalmente (durante uma palestra numa faculdade de Direito de Santos) carta-denúncia a respeito do episódio ao Sr. João Carlos Alexim, delegado para o Brasil da Organização Internacional do Trabalho - OIT. Em outubro a OIT responde que por exigências legais a denúncia só poderia ser aceita se encaminhada por um Sindicato de Trabalhadores. Com a ratificação e a consignação solidária do Sindicato dos Químicos do ABC, a denúncia é encaminhada em abril do ano seguinte (1.996) para o escritório da Organização em Brasília, que remete o documento para avaliação na Suiça. Em março de 1.997, através de correspondência oficial do Sr. André Zenger (chefe do Serviço de Aplicações de Normas), a OIT comunica que enviara representação ao governo brasileiro solicitando esclarecimentos por infração à Convenção 155, que versa sobre o "Meio Ambiente de Trabalho" e da qual o Brasil é signatário.



9. A negligência, as manobras, os desmandos e as irregularidades que até hoje colaboram para a impunidade da Rhodia e de seus dirigentes.


Ao contrário do que se possa imaginar o Termo de Ajustamento de Conduta, embora represente uma conquista, não se consolidou como uma solução adequada aos operários da UQC. Além disso, vários episódios nebulosos acompanham esta história de desmandos, injustiças e impunidade dos criminosos. 
Desde a interdição judicial da fábrica e do incinerador, pelo menos doze trabalhadores faleceram em decorrência direta ou indireta das seqüelas associadas à intoxicação pelos POPs. Em nenhum destes óbitos no entanto, ocorreu a investigação rigorosa do nexo de causalidade que poderia resultar em Ações Indenizatórias para as famílias. Em apenas dois deles foram realizadas autópsias: Carlos Alberto Miranda (a morte que decretou o fechamento da UQC) e Manoel Severino da Silva, morto em 1.994 vitimado por hepatomegalia e hipertensão arterial. A autópsia do primeiro (a cargo do Instituto Médico-Legal de Santos) confirmou danos hepáticos e a presença de agente tóxico em seu sangue, mas um erro grosseiro representado pela descrição deste agente como sendo o BHC (Hexaclorociclohexano, um outro POP cuja presença nunca foi admitida na fábrica da Rhodia) e não o HCB (Hexaclorobenzeno) provocou uma polêmica que prejudicou os encaminhamentos legais da questão. A família do operário, cética quanto aos resultados de uma possível Ação Indenizatória, desistiu da mesma. No caso do segundo, as implicações foram tremendamente mais graves: com autorização familiar, o então responsável pelo caso - Promotor Geraldo Rangel de França Neto - encaminhou o corpo para autópsia na UNICAMP, mandando um assistente - engenheiro Eduardo Kato (oriundo dos quadros da CETESB) - acompanhar e registrar a ação. Conforme relato pessoal deste promotor à ACPO, o assistente teria lhe comentado que até do cérebro do cadáver exalava odor de solventes, e que tudo fora registrado através de uma vídeo-câmera. O laudo no entanto - de responsabilidade do legista Fortunato Badan Palhares - não mostrou evidências claras que embasassem o nexo causal a ponto de ser rejeitado pelo MP como prova. O assistente do Promotor, que se desligaria logo depois dessa função, não elaborou nenhum relatório (embora estivesse em missão oficialmente delegada) e, anos mais tarde - já com o caso sob a responsabilidade do Promotor Daury de Paula Júnior - questionado sobre a gravação da autópsia, respondeu via fax que a mesma havia sido apagada, por ser de má qualidade. Outra vez tornou-se inviável uma Ação Indenizatória pelos familiares.
A inadimplência da empresa em relação às obrigações relativas a saúde dos trabalhadores é flagrante: as avaliações tiveram início apenas um ano após a assinatura do TAC (portanto três anos após a interdição da fábrica) e sua freqüência inicialmente prevista (semestral) jamais foi cumprida. No caso mais grave (Marcelo Martinez de Matos, vítima de câncer de tiróide), houve demora de mais de dois anos para os encaminhamentos médicos. Apenas uma série de avaliação (prevista como vitalícia e periódica conforme o TAC) foi concluída nos funcionários, sendo que nos ex-funcionários e trabalhadores de empreiteiras que têm o mesmo direito assegurado estas avaliações nunca foram levadas à termo passados oito anos da interdição da fábrica. 
Mesmo esta série de avaliação enfrentou problemas graves para sua conclusão: após denúncias de irregularidades por parte da ACPO ao Primeiro Secretário de Administração do Hospital Israelita Albert Einstein Dr. Cláudio Luiz Lottemberg - que cordialmente recebeu os trabalhadores em atendimento à gentil solicitação do Rabino Henry Sobel - foi celebrado um novo contrato de serviços médico-laboratoriais e o médico responsável até então por estes - Dr. Nelson Godinhoto Filho - titular do primeiro contrato de prestação de serviços, foi afastado dos trabalhos.
Também a postura do Sindicato dos Químicos da Baixada Santista, em especial de seu presidente Herbert Passos Filho mostrou-se extremamente suspeita e criminosa em alguns momentos. Expulsou do quadro de associados operários que o criticaram publicamente por tal postura e passou a agir com truculência frente a seus opositores, ao mesmo tempo em que passou a ostentar sinais exteriores de riqueza. Invadiu o "Encontro Nacional dos Trabalhadores e Vítimas da Rhodia", organizado pela ACPO em abril de 1.995 e furtou o equipamento profissional de um fotógrafo contratado para registrar o evento. O inquérito policial instaurado foi estranhamente arquivado pelo delegado responsável. O Sindicato também calou-se por completo diante da inadimplência da Rhodia quanto às obrigações assumidas no TAC, e passou a incentivar a adesão dos contaminados a Programas de Demissão Voluntária, com renúncia tácita a direitos previstos neste. Chegou a fraudar uma Assembléia para legitimar um desses programas, nitidamente lesivo aos interesses dos trabalhadores, sendo denunciado ao Sub-Delegado do Trabalho em Santos - Dr. Osvaldo Roque - que disse que nada poderia fazer pois o Ministério do Trabalho não possui poder de tutela sobre os sindicatos. Também denunciado por este mesmo motivo através de uma Ação Cível da ACPO, esquivou-se graças ao arquivamento da Ação - estranhamente mais uma vez - decidido por um juiz local. Depois desse episódio, nunca mais realizou Assembléias com os trabalhadores para discutir os encaminhamentos do TAC. Em fins de 1.999, quando a Rhodia deflagrou um processo irregular de transferências lesivas de trabalhadores para outras bases (com redução salarial e supressão de direitos, além de desobediência a certas obrigações assumidas no TAC) como represália às primeiras Ações Indenizatórias impetradas pela ACPO, posicionou-se favoravelmente às transferências, e substituiu de maneira unilateral e arbitrária a representante dos trabalhadores na junta médica tripartite constituída - Dra. Rosiléa Leal Dias Mongon - pelo simples fato dela ter declarado ao MP os riscos à saúde dos contaminados envolvidos neste processo. O Dr. José Tarcísio Penteado Buschinelli - indicado à revelia da vontade dos contaminados - notificado oficialmente da contrariedade dos trabalhadores quanto à substituição, também insiste na própria indicação de maneira anti-ética, com iminente denúncia da ACPO ao Conselho Regional de Medicina sobre esta posição, cujo impasse neste momento impede a continuidade das avaliações médicas. 
Já em dezembro de 1.997 a ACPO em audiência em Brasília junto ao Secretário Nacional de Saúde e Segurança no Trabalho - Dr. Zuher Handar - denunciava as atitudes arbitrárias e lesivas do Sindicato dos Químicos da Baixada Santista contra os trabalhadores e a inadimplência da Rhodia quanto ao cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta que encerrou a Ação Civil Pública. Mais uma vez no entanto o Ministério do Trabalho (após encaminhar o caso para a DRT de São Paulo) se pronunciou impossibilitado de intervir na questão. Por outro lado, este mesmo Ministério - via Itamaraty - já havia respondido à OIT que a questão da contaminação química dos trabalhadores havia sido equacionada com a assinatura do respectivo TAC pela empresa responsável, sem no entanto jamais ter demonstrado qualquer interesse em fiscalizar o cumprimento das obrigações assumidas pela Rhodia em dito acordo judicial. 
Ainda nesta viagem a Brasília em dezembro de 1.997, em audiência com o ministro da Saúde José Serra, a ACPO solicita a retomada do "Projeto Samaritá" (avaliação do impacto dos POPs sobre a saúde dos moradores das áreas contaminadas) com recursos federais, recebendo do ministro a promessa de avaliar a questão. O monitoramento epidemiológico permanece sem prosseguimento até a atualidade.
A Previdência Pública por sua vez não reconhece a intoxicação crônica pelos POPs - em especial o Hexaclorobenzeno (HCB) - como doença ocupacional, embora contraditoriamente reconheça na intoxicação ocorrida no meio ambiente de trabalho um acidente laboral. Desta forma, não concede os benefícios previstos na legislação aos contaminados, exceto se condenada judicialmente a tal, ainda assim mediante enfrentamento jurídico acirrado. O INSS no entanto, nunca moveu Ação Judicial de Regressividade contra a Rhodia quanto a prestação de benefícios acidentários, como exige preceito constitucional sobre o tema. Nas chamadas Ações Acidentárias por sua vez, a ausência de jurisprudência específica para a intoxicação por POPs leva os magistrados a sustentar posições pessoais, em que uma corrente acredita serem a contaminação e a exclusão profissional suficientes para justificar a concessão do Auxílio-Acidente, e outra nega-se a conceder o benefício não considerando a intoxicação um dano presente, e sim uma provável lesão futura.
Esta última tendência de não reconhecimento dos danos representados pela intoxicação crônica é mantida nas Ações de Responsabilidade Civil. Nas primeiras Ações Indenizatórias impetradas em meados de 1.999 (depois de esgotadas as possibilidades de uma solução negociada, formalmente solicitada em duas ocasiões pela ACPO e rejeitada pela Rhodia), a maior parte das sentenças proferidas em primeira instância (comarca de Cubatão) considerou improcedente o pedido de reparação dos contaminados, e em especial um magistrado local, o Meritíssmo Dr. Mário Roberto Negreiro Velloso afrontou em sua argumentação pela não procedência toda a legislação e princípios legais sobre saúde e segurança no trabalho, ao afirmar textualmente que "... apurous-se apenas a esteatose hepática, que pode ter diversas etiologias ...O autor trabalhou em área industrial, e não pode exigir da empresa que sua saúde permaneça intacta como se ele estivesse numa estância climática...Pelo exposto, julgo IMPROCEDENTE a presente ação de indenização, condenando o autor em custas e despesas processuais", numa postura que apenas confirmou - quase três décadas depois - o pensamento autoritário e irresponsável do ministro da ditadura militar Costa Cavalcante, manifestado publicamente na Conferência de Estocolmo sobre o Ambiente Humano. Criticado publicamente pela ACPO através da imprensa (algumas matérias em edição nacional), este juiz recuaria dias depois ao conceder indenização a um morador das áreas contaminadas, afirmando desta feita em sua sentença: " A mera existência de HCB no sangue já é um mal, mesmo porque ninguém nasce com HCB...Reconheço, desta forma, o dano...Pelo exposto, JULGO PROCEDENTE a presente ação de indenização e condeno a requerida RHODIA..." 
Coincidência ou não, este e outros juízes locais lecionam na faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, cujo reitor não é outro senão o advogado de defesa da Rhodia, Dr. Francisco Prado Oliveira Ribeiro. Paralelamente ao exercício da advocacia, o Dr. Oliveira Ribeiro exerce também a função de Secretário da Habitação do Estado de São Paulo. 
Também os antigos moradores do lixão químico do Rio Pilões, removidos para um conjunto de apartamentos construído pela CDHU (órgão da Secretaria Estadual da Habitação) não lograram êxito em suas pretensões indenizatórias, com raras exceções em que apenas o dano moral foi reconhecido e arbitrado, em média, em irrisórios 100 (cem) salários mínimos. 
Nenhum morador das áreas contaminadas em São Vicente e em Itanhaém foi indenizado pela depreciação do valor patrimonial de suas propriedades, assim como os próprios municípios afetados pela contaminação ambiental em áreas estratégicas para o seu desenvolvimento sócio-econômico jamais receberam qualquer tipo de compensação financeira. No único caso em que ocorreu esta possibilidade (São Vicente, onde o Meritíssimo Dr. Carlos Fonseca Monnerat sentenciou, a 1 de setembro de 1.995, uma indenização arbitrada em R$8.777.743,00 a ser creditada no Fundo de Reparação Ambiental de que trata o artigo 13 da lei 7.347/85), a empresa recorreu e conseguiu isentar-se desta condenação através da seguinte decisão proferida em 5 de abril de 2.000 pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ: 
"A empresa que estiver realizando a recuperação ambiental por danos que tenha causado não pode ser obrigada também a pagar indenização. Esse é o entendimento unânime da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça... Segundo o entendimento da Turma julgadora, a empresa também não pode ser condenada a implantar um sistema de abastecimento de água, que é obrigação dos donos do loteamento. Nos loteamentos regulares fornecimento de água potável é obrigação de seus proprietários e a responsabilidade da empresa só seria a de fornecer o precioso líquido nos loteamentos clandestinos que ali, por ventura, existissem", conclui Garcia Vieira. Processo: Resp 247162"
Até a presente data nenhum dirigente da empresa foi alvo de Ação de Responsabilização Criminal, apesar de todo este histórico de flagrantes delitos. Da mesma forma, nenhuma Ação Penal foi proposta contra qualquer um dos vários personagens envolvidos na irregularidades supra mencionadas.



10. Estocolmo 2.001, o Brasil assina o Tratado para Banimento dos POPs: a lição do "Caso Rhodia/Baixada Santista" terá sido aprendida?


Em maio deste ano - quase três décadas depois da Conferência sobre o Ambiente Humano - a mesma Estocolmo na Suécia sediou a Conferência Diplomática convocada pelo Programa para o Meio Ambiente das Nações Unidas (PNUMA) para a assinatura do Tratado Internacional para Banimento dos Poluentes Orgânicos Persistentes. O Brasil e outras 89 nações assinaram o Tratado, que precisa ser ratificado pelo Congresso Nacional. Até agora, não se têm nenhuma notícia concreta sobre o encaminhamento da matéria por parte do Poder Exetivo para o Parlamento. A não ratificação e implementação do Tratado pode, perigosamente, ter efeito inverso: com a adesão de outros países, o Brasil corre o risco de se tornar ainda mais um pólo de atração da superada tecnologia dos organoclorados.
Vários episódios de contaminação ambiental e exposição humana por poluentes tóxicos, incluindo POPs, têm ganhado espaço na mídia sem no entanto parecer sensibilizar as autoridades. 
Enquanto isso, a Baixada Santista acaba de se assustar com a divulgação pela CETESB (com dois anos de atraso e ao custo de R$1.500.000,00 aproximadamente) de um estudo que apontou a grave contaminação do sedimento e da biota do estuário da região por inúmeros poluentes tóxicos oriundos do pólo industrial de Cubatão, inclusive por POPs perigosíssimos para a saúde pública como as dioxinas e os policloretos de bifenilas (PCBs). Anteriormente, pesquisas efetuadas com dados oficiais de morbidade e mortalidade pelo Oncocentro (órgão ligado à Secretaria Estadual da Saúde) e pela Dra. Marcília Medrado Dias da faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) já haviam apontado a incidência de câncer na região como a maior em todo o estado de São Paulo.
As indústrias de Cubatão acenam com a intenção de dragar 3 milhões de metros cúbicos deste sedimento para descarte no oceano Atlântico, como forma de reparação ambiental. O atual prefeito de Cubatão Clermont Castor Silveira aplaudiu publicamente a proposta. Já o prefeito de São Vicente, Márcio França, há anos tenta desapropriar com recursos públicos áreas contaminadas em seu município sob a responsabilidade da Rhodia. Ainda em São Vicente, a Secretaria Estadual da Habitação (através da CDHU) está realizando a urbanização da maior favela do estado de São Paulo - a "México 70" - a partir do aterramento hidráulico com sedimento do estuário, em área adjacente aos lixões químicos em que, pela primeira vez em que se realizaram análises independentes (o estudo da CETESB) foi detectada e admitida a presença de dioxinas. Até o início deste ano já haviam sido dragados 100.000 metros cúbicos de sedimento suspeito de contaminação, e até a entrega da obra deverão ser dragados outros 200.000 metros cúbicos. Também o sedimento do Rio Perequê, que passa ao lado da Rhodia, teve seu sedimento contaminado pelos POPs da Rhodia e pelo mercúrio da Carbocloro utilizado nas obras do Hipermercado Extra da cidade de Praia Grande.
Às margens da rodovia Pedro Taques (Km 67) - projetada para receber 12.000 toneladas e que abriga mais que o dobro, com o rompimento das geomembranas já admitido pela CETESB - a "Estação de Espera" justifica o nome plenamente. Assim como a SABESP continua captando água de um rio com margens altamente contaminadas e insistindo na ausência de riscos.

Um dos dez maiores crimes de contaminação do solo e das águas subterrâneas do planeta e o maior drama de exposição humana no Brasil aos Poluentes Orgânicos Persistentes, o "Caso Rhodia/Baixada Santista" teve origem num erro histórico do governo brasileiro, fato que pode ser atribuído ao arbítrio que imperava em nosso país na ocasião. Mas a perpetuação de suas conseqüências e implicações nos dias atuais não. A ACPO recorre a uma das suas colaboradoras e maior pesquisadora do assunto - em sua Dissertação de Mestrado na faculdade de Saúde Pública da USP - para expressar sua opinião a respeito: 

 

"... podemos estar assistindo à instalação de uma bomba de efeito retardado e deixando às futuras gerações uma herança de problemas de difícil solução. Modificar esse prognóstico sombrio depende muito mais de uma decisão política do que de possibilidades técnicas operacionais".


Agnes Soares da Silva
Médica Sanitarista
Mestre em Saúde Pública

 

São Paulo, 14 de setembro de 2.001.